Antes de começar
Começo por revelar um dos meus gastro- handicaps
: ODEIO todos os doces regionais que se fazem no Minho pelo Natal, com especial incidência nos mexidos
ou formigos
(pequeno monstro transgénico com aspecto e sabor a vómito alienígena) e na aletria
(esse bloco de argamassa com sabor a água…). Esta última, creio, carece apenas de alguma customização; um dia, talvez… Na verdade, o princípio por detrás da confeção da aletria é praticamente o mesmo do arroz doce, se não contarmos com alguns desvios regionais e sub-tipos povera
(como é o caso da aletria sem leite nem ovos, que nunca provei, mas que imagino seja horripilante). Considero isto um handicap
porque eu sou gajo de comer tudo e de gostar de tudo, que mais não seja porque preciso de injetar sentido nessa persona
“food lover” que há anos decidi apresentar ao Mundo. E dizer com pride
que sou minhoto para depois odiar mexidos é assim uma espécie de mácula conceptual. Porquê falar destas coisas num post
sobre o arroz doce? Porque no Natal eu faço sempre um panelão só-pra-mim para ter algo ao mesmo tempo tradicional e delicioso que eu possa comer sem fazer cara feia. E ainda que o arroz doce seja tudo menos um prato originalmente Português (escrevam “rice pudding” no Wikipedia…
), existem variações regionais verdadeiramente únicas e peculiares. Como esta. Por outro lado, é extraordinariamente versátil para se poder empratar de acordo com as regras mais pindéricas do food design. E vocês sabem bem como eu adoro Moda
… Ora, a versão que faço mais vezes, porque gosto e porque me pedem, é inspirada numa receita amarense que o incontornável Chefe Silva divulgou nos anos 80 na mítica Tele-Culinária. Leva laranja (evidentemente), gemas q.b. e açúcar abundante. A canela é totalmente facultativa; quando faço só para mim, não a uso. Gosto que o arroz saiba apenas a laranja, ou melhor, a “doce de laranja”! — olimpicamente cremoso e fuck
‘amente agridoce. Mas porque há pessoas que não vivem sem clichés
, dou por mim a usar a canela para efeitos quase que meramente decorativos (como as fotos acima o podem atestar). Antes de avançar com a receita, porém, um dado de importância capital: um arroz doce só é bom se der para comer À COLHER, e não de faca e garfo (não entendo o conceito de arroz doce em bloco…); ou seja, tem que ser cremoso como um leite creme, preservando alguma da “calda” onde o arroz cozeu, e ter uma textura aveludada. Se seguirem fielmente as instruções da receita below
, terão um arroz doce que poderá ser feito várias horas antes de ser degustado, sem no entanto perder a cremosidade ou transformar-se num pega-monstro. Assim:
Ingredientes
(para 6 taças ou 1 travessa grande)
Confecção
(30 minutos, se forem ágeis)
Colocar numa panela o dobro do volume de arroz em água temperada com uma pitada de sal. Quando começar a ferver, deitar o arroz e deixar cozer em lume médio/brando. Pessoal que tem a mania que percebe destas merdas e que viu o Jamie Oliver a fazer “rice pudding” na têvê vai já torcer o nariz e começar a roncar, mas a verdade é que isto de cozer primeiro o arroz em água é O segredo para um arroz doce de calibre motherfucker. Mais: não só se coze o arroz em água antes, como NÃO SE ESCORRE O ARROZ depois! Isto é: a quantidade dupla de água serve justamente para permitir que o arroz coza (repito: em lume médio/brando), libertando lentamente a sua goma natural, à medida que o bago vai absorvendo o líquido e aumentando de volume. Ou seja, desligem o lume quando o arroz tiver um aspecto de papa que noutro contexto culinário seria considerado um desastre. No entretanto, já se pôs o leite e a casca de uma laranja inteira noutra panela (ou tacho, para os puristas), mais larga e não tão funda, em lume médio/brando. Não é suposto que o leite ferva; é suposto que o leite aqueça e se deixe inebriar pelos óleos da laranja. Quando começar a borbulhar levemente, retirar as cascas com a escumadeira e atirar lá para dentro o arroz não escorrido, ou seja, arroz + água residual da cozedura. A partir daqui, é fácil: mexer, mexer, mexer. Quando o leite recomeçar a borbulhar, colocar o açúcar, e mexer, mexer, mexer. Sem parar. Para não pegar, e para trabalhar o quê? A cremosidade! A recta final, porém, é bastante tricky , e é aqui que muita gente se espalha ao comprido. Não é suposto que o arroz fique com aspecto de “arroz doce” ainda dentro da panela. Há quem insista em mexer, mexer, mexer, indefinidamente, até que o líquido se evapore quase todo, pois acha que “…ainda está muito líquido!” e então chora e já roga a todos os anjos e santinhos porque a cena “…não está a resultaaaaaaaaaar!”. Calma. Desde que se põe o açúcar, a coisa não demora mais que 15 a 20 minutos sempre a mexer, e sempre em lume médio/brando. Nesta altura, o arroz estará com toda a certeza bastante runny , mas é assim mesmo que tem que ser. Numa tigelinha, mexem-se as 5 gemas com uma colher de sopa de “calda” do arroz quente, para ser mais fácil depois incorporá-las no preparado. Nesta fase, dá jeito ter alguém para ajudar a verter as gemas liquefeitas na panela do arroz, muito devagarinho, enquanto se mexe freneticamente para impedir que coalhem. Esqueci-me de dizer: a panela já deverá estar FORA do lume! O calor residual é mais do que suficiente para cozer as gemas, e, mesmo depois de devidamente incorporadas, convém continuar a mexer o arroz durante 1 ou 2 minutos, com a panela fora do lume, para trabalhar a… wait for it … cremosidade! Só então se poderão colocar em taças individuais ou numa travessa grande. A outra laranja é neste instante raspada para cima do arroz; os óleos que se libertam (quase invisíveis a olho nu, mas que dão para ver muito bem naquele genérico super-hot do Dexter) vão dar ao resultado final a frescura e a acidez certas para contrastar com o doce intenso do arroz. Se quiserem, podem também pôr canela. Mas confiem em mim: é muito melhor sem! Uma hora de descanso (dentro ou fora do frigorífico, tanto faz) e está pronto a comer.
Espero depois disto não voltar a ler via Facebook testemunhos de amigos sobre o arroz doce que mais parecem descrições do Apocalipse…
Chef Rø © 2012
Sobremesa servida no contexto do projeto ® [Marca Registada] para a equipa da coreógrafa Cláudia Dias (Vila do Conde, Setembro 2012) e ensinada na primeira sessão [ By The Book/The Covers ] de La Mia Casa È La Tua Casa , dedicada aos clássicos incontornáveis (Braga, Janeiro 2014).